2014/09/19

Dia 1970

Espera ai. Cheguei agora da rua, passei no mercado e trouxe alguns congelados, batatas smile - sou viciado nelas - e alguns macarrões instantâneos. A vida de quem mora em apartamento sozinho se torna um pouco instantânea não é verdade? O bolo de caneca é instantâneo, o macarrão é instantâneo. Até a sopa em dia de gripe se torna instantânea. E agora nesse apartamento eu tenho que dizer que as coisas mudaram. Bom, desde que ela foi embora eu acho.
Mas pra você entender tudo eu tenho que contar como tudo começou. 
Estou esquentando um café e esse não é instantâneo, você quer?
Quando fiz 23 anos eu consegui comprar meu primeiro apartamento. Ainda estou pagando na verdade. Mas ele já é meu. Ele não tem nada de "Nossa!" ou "Uau!", ele é só meu. Algumas paredes e um piso de azulejo branco. Com o tempo ele foi ficando mais respeitável. Um sofá bacana que pegava a luz que vinha da sacada. Alguns discos de vinil na parede e quadros faziam a decoração. Aquela flor, como é mesmo o nome? Copo de leite. E tinha um vaso com 2 delas. Mesa de jantar. Algumas revistas e livros na estante. Estatua de buda e alguns símbolos indianos. Fotografias... Só da Marilyn Monroe em um quadro e duas de paisagens das viagens que fiz. Um sofa-cama na sala de couro preto. Um tapete peludo pra ficar style. E a mesa de centro de madeira escura com aqueles enfeites.
Era um sonho sabe? Afinal, que Paulistano não gostaria de morar no centro? Meu condomínio ficava no bairro da Consolação. Procura no google. É legal aqui. Tem bons bares. Grafite nas paredes. De vez em quando tiro foto de alguns e posto na internet. Clima agradável nas ruas e é só subir a rua e eu acabo na Av. Paulista pra tomar algo no Starbucks. Pessoas passeiam com seus cachorros na rua e recolhem a sujeira, o que é melhor.
No começo eu não ligava muito pra limpeza do AP. Era apenas eu. Mas sempre havia musica tocando em casa. O Rappa, Engenheiros do Hawaii. Paralamas. Titãs. Los Hermanos. Ultraje... De vez em quando até tocava um Oriente, Ponto de Equilibrio, Forfun, Haikaiss. 
Ás vezes eu ficava a noite na varanda vendo as luzes da cidade, brincando em tentar descobrir o que a pessoa que esta com a luz ligada no apartamento da frente esta fazendo. Ás vezes ela acabou de sair do banho ou esta falando com o namorado ao telefone contando como foi seu dia. Ou então esta arrumando as coisas pro próximo dia de trabalho. 
Nunca fui bom com palavras. Não sou poeta, mas escrevo como se fosse um. Queria ser. E se fosse, escreveria sobre as luzes da cidade. 
Então veio essa garota. Que começou a frequentar meu apartamento. Acho que foi nessa parte que eu comecei a arrumar meu AP. E regar as plantas. E passar o aspirador. Essas coisas.
E ela, essa garota, vinha me visitar com frequência. Então a casa sempre estava limpa. A geladeira farta, nada rápido de fazer porque eu queria que ela ficasse por muito tempo ali. Então eu cozinhava pra ela ficar pro jantar. Escolhia o melhor playlist de Engenheiros porque ela adorava Engenheiros. Dai a gente sentava na varanda e ficava vendo as luzes da cidade juntos. 
Quando eu chegava da rua, tinha a mania de passar a chave na porta e colocar a chave em cima da bancada em frente a porta. Tinha um espelho grande e redondo nela. Para aquela ultima olhadinha antes de sair sabe? O telefone da casa ficava nessa bancada também e um bloquinho de anotações com uma caneta. 
Ela já tinha vindo tantas vezes que passava direto pela portaria. Quando sabia que ela vinha eu deixava a porta aberta enquanto eu cozinhava. Entrava como se morasse ali. Eu gostava disso. 
Mas então simplesmente um dia ela parou de vir. Só nao veio mais. Talvez tenha se enjoado de ouvir Engenheiros do Hawaii ou sei lá.
Eu parei de ouvir a risada dela cruzando a porta. Não tem mais música no apartamento, agora é só silêncio. As comidas são instantâneas. As luzes parece que se apagaram todas e eu nem acho mais meu controle remoto nessa sala enorme. 
Mas sabe que, eu ainda deixo a porta aberta. Eu ainda sento na varanda. Eu ainda espero ela entrar.  

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